ALFAIATES DE OUTRORA (2)
O artigo fala dos alfaiates que existiram em Catanduva a partir de 1940. Matéria do livro "Recordações de Catanduva e outras estórias" editado em 1.996. autor Edgar Ferreira que está lúcido com 97 anos e reside em Catanduva
Pesquisador e digitador Nelson Bassanetti
Em uma dessas últimas noites, era bem tarde por sinal, após refletir em coisas já passadas adormeci, e ao sono agitado percebi então a figura estranha, empoeirada, adentrar-me o quarto e sem a mínima cerimônia tomar-me pelo braço! Sob meus protestos, essa visão cuja conduta especial (eu soube depois) e evidenciar a glória ou a derrota dos homens, quando por mim interpelada disse-me, secamente, ser mensageira da História!
E essa aparição, eterna caçadora de verdade, arrastou-me por longos caminhos, lugares conhecidos, desconhecidos até que depois por passar-me por estreita porta de uma casa estranha, empurrou-me na sala adentro onde um grupo de homens circunspectos, uns atrás de grande mesa, outros alinhados em poltronas estofadas lembravam-me, no todo, a disposição de pessoas e móveis de um tribunal de júri!
Hipnotizado pelo medo, meus olhos não deixavam de fixar-se nesse grupo de pessoas que para mim se revelavam agora meus inquisidores, Eu ia ser julgado! Julgado como colunista de um jornal! Sem nenhum socorro até aquele momento, meu cérebro buscava freneticamente uma saída de tudo aquilo que me parecia profunda loucura, ainda mais agora quando eu recebia de um homem de toga negra instruções para que não manchasse o nome da Corte!
Em seguida esse mesmo senhor, após obter o silêncio dos presentes, fez-me ciente de que era desejo do tribunal fazer justiça, e seguindo-se a apresentação da minha defensora, uma poética e eloquente senhora chamada “Memória”, deu por aberta a sessão.
Levantou-se então meu primeiro inquiridor e com voz ardente deitou sua fala.
“O colunista é acusado de não ter mencionado em suas LEMBRANÇAS! nas páginas do jornal “O REGIONAL”, quando falou de mestres, contramestres e oficiais de alfaiataria que passaram por esta cidade, o nome de Luiz Nucci, estabelecido, em época passada, na Rua Brasil lá pelo número 446. homem de pouca fala, mas de extrema calma e candura! E, em se esquecendo desse antigo e saudoso mestre, o colunista esqueceu-se também de dizer que era ali, nos fundos da mesma oficina, onde moravam Luiz Nucci e família que o acusado e demais companheiros de ginásio se reuniam nas tardes de domingo, para em companhia de Fábio Guzzo – sobrinho e filho adotivo do casal – formar a mesa do jogo de pôquer, sem que as fichas tivessem qualquer valor expressivo. Por ingratidão ou não (esta Corte ignora), esqueceu-se ainda de dizer nas linhas que Dona Catarina, a senhora da casa, quem lhes servia nessas mesmas tardes ociosas, o café saboroso, passado na hora!”.
Fez se silêncio...
Exibindo fala macia, mas corpo já cansado, desgastado pelo tempo levantou-se um segundo acusante.
“Também daqui, deste Tribunal da História, acuso o mesmo colunista de ter voluntariamente ou involuntariamente omitido de sua coluna o nome de excelente profissional e cidadão insigne, Eduardo Pinfildi, então estabelecido à Rua Minas, 322 (segundo a nota que tenho aqui), e um dos primeiros profissionais da tesoura a se fixar nesta cidade, criando ao longo dos anos uma família de estupenda moral e honradez dignos de todo o respeito desta sociedade, conforme o próprio acusado pode testemunhar nas pessoas de seus filhos. Alberto, Ivo, Cid Pinfildi, os dois primeiros seus companheiros de juventude!” Depois, continuou;
“Chamo ainda a atenção de todos que agora me escutam e lhes pergunto se não notaram também a ausência de Dario Teixeira, de José Damiani e de Francisco Rotundo, que nas horas ociosas mostrava talento e arte no palco do Cine República como artista amador, ou mesmo Pedro Gabriel, violonista hábil, sentimental, e que nas frias madrugadas de outrora se dava ao trabalho de tomar de seu violino e acompanhar o acusado e seus companheiros boêmios pelas ruas da cidade em românticas serenatas?”
Seguiu-se um grande silêncio.
Vi, então, que ficara pra trás não apenas os nomes daqueles ilustres senhor que um dia foram donos da moda, mas também me esquecera de: Humberto Spanazzi, Rômulo Bugelli, Bianchi e Silva, Vicente Giglio, Irmãos Mazzini, Luiz Dian – este último oficial na Alfaiataria Macuco.
Quantas injustiças não cometem os homens contra seus semelhantes projetando uns de pouco valor, esquecendo outros inesquecíveis? Não foi assim com Bartolomeu de Gusmão a quem chamaram louco para lhe arrebatar a glória de haver subido ao céu pela primeira vez? Não foi assim com José Fortuna, o romântico poeta sertanejo, do qual o aniversário de morte ninguém lembrou e cujos versos de esplêndida beleza jamais figuravam em qualquer antologia poética?
O silêncio envolvente quebrou-se quando minha defensora, a loquaz senhora “MEMÓRIA” num discurso vibrante, arrebatador defendeu diante aquele exigente tribunal a “Tese do Esquecimento”, terminando por pedir perdão para seu constituinte, o qual no decorrer daqueles trabalhos já admitira sua culpa perante a Corte!
A um gesto do Presidente lentaram-se todos,... “Absolv....”
Acordei! A madrugada era fria, no entanto aquecia-me o sentimento da retratação, iluminava-me a luz da compreensão dos homens. Virei-me de lado e voltei a dormir como dorme tranquilamente o justo...