Caramanchão da Praça da República
Edgar Ferreira
Pouco me importa a Catanduva envelhecida dos arranha-céus de agora, e muito menos me importa que se engaje hoje nos Setenta e seis! (escreveu em 1994). O que me invoca e me toca mesmo é a Catanduva das ruas calmas, de terra pisada onde eu rolava em menino nas lutas contratadas dentro das salas do Grupo Escolar! Pouco me importa a Catanduva das torres de rádio, de televisão, dos ônibus de mil toneladas, urbanos ou não, que cortam a cidade, as estradas, se juntando seus ruídos aos barulhos das motocicletas tão velozes, quanto diabolicamente atrevidas, agradam aos ouvidos de alguém !
Quero minha Catanduva, da qual sou filho adotivo, com a mesma paixão com que vi na infância, o sino da Matriz dobrando à partida eterna de alguém, a palavra ameaçadora do sacerdote vinda do púlpito nas noites de reza (eu agarrava a mão de minha mãe e tinha medo), a lembrança de rodar o pião na calçada de terra batida, as caçadas nos cafezais fecundos que, como uma coroa verde de louros envolviam a cidade calma e serena! Revê-la com o céu multicor dos papagaios que eu fazia com o Mandrake para depois vendê-los por ali.
Quero sonhar com as casas barrocas que já se foram, de forro e janelas de cedro onde eu, sentado na soleira da porta, cortava a dentes, a sobra do nó dado no cabresto do meu cartola!
Quero revê-la agitada com a chegada do circo e a banda de instrumentos reluzentes descer, em cadência de guerra, a Rua Brasil a som de “Dois Corações”, e depois, e depois quando acabava o espetáculo do circo, eu sair por baixo da bancada para olhar as pernas das moças incautas, indiferentes!
Quero voltar no tempo e, como num passe de mágica lembrança, tornar a ver o Cine República da minha infante Catanduva, com suas frisas, suas cadeiras junto à cabine de projeção onde nos agarrávamos com nossas namoradas até ... até a fala implicante do guarda da ronda!
Que me importa se ela tem hoje motéis de alto luxo, de executivos, de encontros furtivos, senão vejo mais os bordéis da minha mocidade lá na Rua Pernambuco, onde ao som dos tangos de Gardel, dos corridos mexicanos eu e o Zé Marcos ficávamos, madrugada adentro, inebriados pelo perfume das mariposas de então.
O que eu quero mesmo, e juro, é que se levante aqui, em um lugar qualquer, ao invés de construções de rígida frieza e a exemplo da eterna Jerusalém, um muro de lamentações para que eu possa chorar, de verdade, o gesto bruto de um prefeito insolente quando mandou arrancar as Palmeiras Imperiais do jardim primitivo, que irreverentemente pôs abaixo, o caramanchel de primaveras azuis, onde os enforcadores de aulas do ginásio, talabarte desafivelado e deitados por sobre as pedras frias da murada, contavam lorotas, garganteavam de suas pretensas conquistas!
Que me importa o progresso. O progresso é a paisagem dos que estão por vir. O que me importa mesmo é debruçar-me sobre o mesmo muro e depois verter lágrimas de angústia ao relembrar das antigas ruas largas, sem calçadões, sem mendigos esparramados estendendo às mãos, sem legiões de bilheteiros, de vendedores de bingo, sem barracas de quinquilharias.
Ah, se no lugar das pontes de concreto eu pudesse passar novamente por sobre as antigas estruturas de madeira, sobre as pinguelas do rio que corria ainda a rés do chão e beber de suas águas virgens – virgens, como as doze virgens das lâmpadas de São Mateus, se eu pudesse !
Pouco me importa se Catanduva em envelhecendo no calendário do tempo rejuvenescesse na seiva do progresso ... pouco me importa!
Livro “Recordações de Catanduva ... e outras estórias” (Crônicas) de Edgar Ferreira (1996)